Adaptações são controversas. Há quem busque nelas um retrato
fiel da obra original e também quem olhe o material novo como algo independente
, que pode ser lido como único, sem comparar com a obra adaptada. Existem
exemplos de filmes baseados em livros que ficaram bastante convincentes, como
“Dr. Jekyll and Mr. Hyde” nas versões cinematográficas de 1931 e 1941, que
espelham o livro de Robert Louis Stevenson e funcionam perfeitamente, mesmo com
algumas mudanças em relação ao conto original. Já no filme “O Homem Invisível”,
de 1933, existem diferenças mais significativas, mas em determinados momentos o
livro de H. G. Wells serve praticamente como o roteiro, de tão fiel que ficou a
adaptação.
Fredric March como Sr. Hyde (1931)
Spencer Traci como Sr. Hyde (1941)
Porém, muitas obras não carregam a qualidade para outras
mídias. Infelizmente, esse é o caso da recente animação “Castlevania”,
distribuída pela Netflix no Brasil desde sexta-feira (7). Escrita por Warren
Ellis, roteirista dos quadrinhos Authority, Planetary, e muitos outros
excelentes, a primeira temporada da série tem quatro episódios de cerca de 22
minutos cada. A animação é baseada no jogo “Castlevania III: Dracula’s Curse”,
da plataforma NES (conhecida no Brasil como Nintendinho).
Capa de Castlevania III: Dracula's Curse, para NES
No game, Trevor Belmont (antepassado do protagonista do primeiro
jogo da franquia) é chamado pela Igreja para eliminar o Conde Drácula e o
exército de monstros que ele comanda. Munido de um chicote sagrado batizado de
“Vampire Killer”, ele segue ao país Wallachia para enfrentar o vilão no castelo
dele. Pela primeira vez na série, o jogador tem à disposição mais de um
personagem para escolher. Além de Trevor, o time de heróis conta com a mágica
de Sypha Belnades, a agilidade de Grant DaNasty e os poderes de Alucard, filho
de Drácula. O jogo tem como cenário igrejas, cemitérios, casas de máquinas,
vilas residenciais e o castelo do vilão.
Cenário do primeiro chefe em Castlevania III
A franquia nasceu inspirada no livro Drácula, de Bram
Stoker, e surgiu como opção de jogo de ação e aventura para um público mais
velho. É uma das primeiras séries de videogame que se passa em locais sombrios
e com temática voltada ao terror. A
estreia ocorreu em 26 de setembro de 1986, com “Castlevania” e “Vampire Killer”*
e hoje a saga conta com 35 jogos lançados, em diversas versões, para vários
consoles diferentes. É um clássico no mundo dos games, considerado difícil, mas
de excelente jogabilidade, com muita ação e aventura**. Foi justamente
“Castlevania III: Dracula’s Curse” o jogo considerado por muito tempo o mais
difícil da franquia.
Atenção: A partir deste ponto, há alguns spoilers sobre a série
A expectativa era de uma série com ação e aventura, em
ambientes macabros. Ledo engano. O primeiro episódio tem como foco o romance
entre Drácula e uma humana. O vampiro aparece logo na primeira cena, tira em
absoluto o ar de mistério. Ele é muito teatral, lembra muito mais os vampiros
modernos de Anne Rice do que o cruel e sanguinário vilão de Stoker. A trama
gira em torno desse amor e culmina na escolha de Drácula por devastar o mundo
com seu exército de demônios. Ele consegue se comunicar por meio de fogueiras,
criar tornados gigantescos de chamas, terremotos e conjurar pestes.
Drácula conhece esposa na primeira cena da série
Trevor Belmont aparece apenas na última cena do primeiro
episódio. Depois disso, ele é retratado como um errante bêbado que tem como
único objetivo reconstruir o nome decadente de sua família, conhecida por todos
como amiga das magias ocultas. Porém, ele afirma que eles eram caçadores de
vampiros. Ele é uma figura mais próxima ao anti-herói, mas foi concebido de
forma muito forçada. Sem carisma algum, uma cópia genérica de personagens de
anime, como Vegeta (Dragon Ball), Yusuke (Yu Yu Hakusho), Ikki (Cavaleiros do
Zodíaco) ou qualquer outro. Falta personalidade própria para Trevor.
Trevor Belmont teve visual adaptado na animação
A ação e a aventura começam no segundo episódio, ou seja, um
quarto da série foi desperdiçada com a história de amor e tragédia do vilão.
Vocês lembram quando o conde Drácula era um vilão sanguinário e tenebroso? O
que aconteceu que ninguém mais o retrata assim? Por que todos os autores querem
justificar a maldade desse lendário vilão com uma história de amor pobre de
criatividade?
E não esperem que a pancadaria comece contra esqueletos,
cabeças de medusa voadoras, centauros, gárgulas ou qualquer monstro. A primeira
luta acontece em uma taverna. É uma cena longa e o tempo que poderia mostrar o
herói contra os monstros é jogado fora. Trevor segue para Wallachia por pura
coincidência e encontra o país em estado de sítio para se proteger do exército
do conde. A defesa do local é feita por moradores e pela Igreja Católica.
Dentro da cidade, Trevor conversa com dezenas de comerciantes, em cena
referente aos diálogos do jogo “Castlevania II”, que carregava elementos de
RPG. De certa forma, um ponto positivo. Depois, a segunda cena de ação, com
Trevor enfrentando padres. De novo, cadê os monstros?
É somente no terceiro episódio que Trevor enfrenta uma
criatura sobrenatural. Ele luta contra o ciclope para resgatar um dos
personagens jogáveis de “Castlevania III”, em uma construção bastante fiel ao
game. Fora isso, no restante do episódio, nada próximo ao original. O enviado
da Igreja na cidade se mostra o vilão da trama (previsível desde a primeira
cena que ele aparece, no primeiro episódio). Ellis tentou mudar um pouco a
mesmice de colocar um enviado católico em uma caça aos demônios, mas acabou caindo
em outro clichê. E infelizmente, passou muito tempo construindo a trama
previsível e sem sal. Esqueceu da ação.
No quarto episódio, finalmente Trevor e Sypha combinam os
poderes. Infelizmente, para enfrentar aldeões e alguns padres. Somente depois
disso é que os heróis enfrentam meia dúzia de criaturas aladas. Então, há uma
cena que acontece em uma casa de máquinas com engrenagens gigantes, remetendo a
um dos cenários do jogo. Depois dessa cena, Trevor e Sypha encontram Alucard***.
Também como no game, eles o enfrentam antes de ele mostrar apoiá-los.
Castlevania merecia mais. Muito mais. O quarto episódio e o
início do terceiro são os pontos positivos da animação. Para quem conhece a
franquia dos games, falta muita coisa para a série. Tentaram compensar a falta
do clima macabro dos jogos com violência visceral, mas não funcionou. Como já
foi confirmada uma segunda temporada, é possível que as engrenagens estejam
mais azeitadas. Em cerca de uma hora e meia de animação, nem mesmo todos os
personagens do jogo foram introduzidos, e há mais confrontos de humanos contra
humanos do que contra monstros. Para quem não conhece o game, existem muitas
falhas técnicas.
As vozes em inglês estão péssimas. Os idosos têm vozes de
jovens, a voz do protagonista não é nada marcante, a do vilão católico, menos
ainda e a do Drácula também. Em português, as vozes ficaram bem melhores. Mas não salvam a animação péssima. A série
foi produzida pela Frederator Studios (co-produtora de A Hora da Aventura, do
Cartoon Network) em conjunto com Powerhouse Animation Studios, dos jogos Mortal
Kombat X e Darksiders 2, Shankar Animation, Project 51 Productions e Mua Film. A
parceria entre as cinco rendeu cenários muito bem feitos, mas com o desenho dos
personagens sobrepostos, que não casam em nada com o fundo. Em vários momentos,
os personagens andam como se deslizassem pelo chão. Nos diálogos, algumas vezes
a cena toda fica estática e apenas a boca do personagem mexe. Em inglês,
acontece de o personagem parar de falar e a boca continuar mexendo.
Para agravar ainda mais, as cenas de ação não são fluidas. A
animação de “Castlevania” está em um nível abaixo do anime Naruto, de 2002.
Pior ainda se comparar com animações mais modernas, como “One Punch Man”, do
estúdio Madhouse.
No fim das contas, a série não é de todo ruim e pode agradar
pessoas menos exigentes que não conhecem a franquia de jogos. Para quem
conhece, alguns momentos são interessantes. Mas as falhas de animação e trama
pobre são bastante graves, deixando “Castlevania” mais próxima às animações dos
anos 1990 do que de 2017. Uma pena, pois apesar de baseada em um jogo, com
poucos diálogos e muito mais ação, “Castlevania” tinha elementos para ser muito
bom. Tomara que a segunda temporada seja melhor.
Notas:
*O jogo de estreia da série foi lançado em duas versões:
“Castlevania” e “Vampire Killer”, a primeira versão, no Japão e Estados Unidos.
A segunda, com nome genérico, na Europa e no Brasil.
Capas têm mesma arte, mas Vampire Killer foi "flipada"
**Em 2010, a franquia ganhou um recomeço, com o jogo
“Castlevania: Lords of Shadow”. O game foi considerado bom pela mídia
especializada. Porém, a continuação “Lords of Shadow 2”, de 2014, foi mal
recebida e também foi o último game da franquia.
Arte de capado jogo Lords of Shadow, lançado em PC, PS3 e Xbox 360
***A versão de Alucard na animação é baseada no jogo
Castlevania: Symphony of the Night, de 1997, famoso game do Playstation. Originalmente,
Alucard tinha o visual mais parecido ao do pai, Drácula. Este personagem foi
concebido pela primeira vez no filme “O Filho de Drácula” (Son of Dracula), de
1943. Neste longa, Lon Chaney Jr. interpreta o conde Alucard (sem spoilers,
para quem não conhece o clássico).
À esquerda, o personagem Alucard, em Castlevania III
Lon Chaney Jr. em Son of Dracula
Alucard em arte de Symphony of the Night
Foram apenas 4 episódios acho que suas conclusões foram um tanto precipitadas,roteiro fraco e animação medíocre ?
ResponderExcluiré qual foi seu parâmetro para essa conclusão ?
indique apenas um seriado ou anime que com 4 episódios de 20 minutos tenha uma super aventura amigo, isso se chama introdução
você apresenta os cenários personagem é organiza tudo para começar á a aventura em questão.
então com certeza para 4 episódios apresentados castlevania cumpriu com sua proposta.
Caro Richar Martins, minha análise foi baseada no que foi apresentado em uma temporada. O fato de serem quatro episódios, curtos, com foco na igreja e no amor de Drácula fizeram com que a trama tenha pouca profundidade. O fato de existirem ou não animações que introduzem melhor os personagens com tão pouco tempo é irrelevante.
ExcluirDe qualquer forma, o texto aqui apresentado é um artigo, uma opinião, não retrata o que todos os espectadores pensam sobre a série.
Agradeço muito a sua visita, sua leitura e atenção a ponto de compartilhar conosco seu ponto de vista.
Esperamos que retorne à página e nos acompanhe.
Abraços.
Um vilão que faz vilanias por puro prazer é algo clichê e bem Hollywoodiano. O primeiro episódio e a mudança foram bem interessantes para um a adaptação moderna e não tão óbvia.
ResponderExcluirAchei interessante o desenvolvimento da trama, fizeram uma boa introdução e deixaram (pelo menos a minha) curiosidade Louca para ver o desenvolvimento da história.
Então realmente discordo da sua análise de roteiro da série.
Já sobre a análise técnica, eu tenho que concordar, animação poderia ser muito melhor, comparado com o que temos e a dublagem americana estava me irritando um cado. Porém sendo alguém que assistiu animes e outros desenhos animados nos 90 e década de 2000, isso não me impediu de apreciar a série.
Ps: esqueci de comentar sobre o Trevor: nada de inovador, é um herói badass, fanfarrão passando pela jornada do herói clássica. Não é ruim, acho interessante, só não é espetacular. Mas acho injusto dizer que falta personalidade e comparar com outros personagens. Existe um "template" e usaram, como em todos que você citou, mas isso não tira a individualidade do personagem, só não deixa-o ser inovador
Caro Gabriel Almeida, agradeço a visita ao blog. Opiniões sempre divirgirão e fico contente que tenha usado parte do seu tempo para vir conversar neste espaço.
ExcluirAbraços.